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Uma reflexão sobre o luto, a partir do terror de Junji Ito

Adeus Suave | Junji Ito

Por Ana Beatriz Goulart Pereira (Bia Goulart)


O gosto pelo terror e pelo suspense marcaram uma etapa da minha infância, quando acompanhei a série de tv do “Sexto Sentido”, na década de 70, muito antes de ler qualquer tipo de mangá ou HQs ocidentais e brasileiros. Depois disso, livros e filmes, com o personagem Sherlock Holmes, criado pelo escritor britânico, nascido na Escócia, Arthur Conan Doyle, foi o mais próximo que cheguei na experiência do suspense, ainda dentro da experiência ocidental. O contato com a História dos Mangás veio tardiamente, mas reabriu ressonâncias que me levaram a dar atenção novamente ao gênero de terror, com descobertas interessantes ao conhecer o principal nome mundial das histórias de mangás de terror contemporâneo, Junji Ito. “Tomie” foi a primeira grande obra de Junji Ito, mangaká japonês, nascido em Gifu, em 1963, coincidentemente, em 31 de julho, data em que essa resenha foi escrita, como homenagem a esse, que é, segundo vários críticos, “um dos mestres do horror japonês”.


Junji Ito criou alguns clássicos dos mangás do gênero de terror, além de Tomie, entre eles, Uzumaki e Gyo, sempre lidando com o bizarro e o sobrenatural. Segundo o site Listal, “Usumaki chegou ao Brasil, publicado pela Conrad em três volumes em 2006. A editora, na época, vinha lançando vários mangás de terror, até então, desconhecidos do grande público, como Panorama do Inferno, de Hideshi Hino, e Ring – O chamado, de Hiroshi Tkahashi”. Agora, em 2021, chegou ao Brasil, Tomie, primeira obra de Junji Ito, serializada no Japão de 1987 a 2000, e vencedora do prêmio Kazuo Umezu, em 1989. A obra foi adaptada para vários filmes e faz sucesso pelo mundo todo. No entanto, a obra do mangaká, que escolhemos para aprofundar é “Suave Adeus”, um horror psicológico, da coleção “Fragmentos do Terror”, publicada no Brasil, pela editora DarkSide Books, em 2017. Trata-se de uma coletânea de mangás de Junji Ito, com 8 histórias curtas de terror e suspense, publicadas originalmente no Japão, em 2013 e 2014, segundo a própria editora, depois do mangaká ter ficado 8 anos sem escrever nada de terror. A capa original faz alusão à obra “O Grito” (1893), referência da arte expressionista do norueguês Edvard Munch, que dialoga com o surrealismo e o terror da obra de Junji Ito.


“Suave Adeus” trata da questão da vida e da morte, o que fica nesse plano depois que o corpo se acaba. A protagonista lida com pessoas que o leitor não sabe se estão vivas ou não. Segundo alguns comentaristas da obra, é um horror psicológico, bem mais tranquilo, menos bizarro e não é um exemplo ideal do horror de Junji Ito, mas dentro da coleção tem qualidades específicas, como lidar com questões sociais, como casamento, hierarquia de gerações e estrutura cultural por grupo familiar, comuns no Japão, além de contar uma história com narrativa temporal longa, com soluções próprias do autor para promover a passagem de tempo e o suspense. Toda feita em preto e branco, com exploração de traços realistas e jogo de cinzas, que beiram um azul, influenciam a trama fantasmagórica que o mangaká quer criar e revelar no final. Começa com a imagem da protagonista com pesar, em primeiro plano, e atrás, um corpo de um senhor, no caixão, com fantasmas observando e um rapaz olhando para a protagonista, o que já gera um drama psicológico no leitor. Mantém a leitura da direita para a esquerda, que força uma atenção à leitura, pela falta de costume dos ocidentais iniciantes no mangá. Fala do medo de uma menina de perder o pai. Ela cresce, se casa e continua tendo pesadelos vivenciando o terror de perder o pai. O contato com a família do marido, que não queria o casamento, desenrola situações e contato da protagonista com seus parentes. Até que desta convivência por oito anos, ela vai descobrindo segredos da família, costumes sobre a manutenção de imagens residuais dos parentes. Até que culmina com o seu contato com esses parentes do marido e o encontro consigo mesma, no final da história.


É difícil enquadrar a obra em algum gênero de mangá, pois não tem apelo erótico, nem pra lutas. Talvez se aproxime do Seinen, para adultos, com tramas mais bem orquestradas e sombrias. Ou ao shojo, já que trata de sentimento adolescente e insegurança feminina, com um garoto doce e gentil, ao menos no início, antes da trama se revelar por completo. Talvez, por isso mesmo, os especialistas falem, atualmente, e mais apropriadamente no gênero de terror, para as obras de Junji Ito. A protagonista é apresentada de cara com seu medo, a perda da mãe, os pesadelos com a morte do pai. A relação carinhosa do pai, com a filha, com cenas cotidianas, misturando realidade, com sonhos, como na cena do “brinquedo pai”, que era um sonho, mas depois assume um lugar na realidade da protagonista, intrigando o leitor.


O mangá revela a insegurança feminina na protagonista Riko, mesmo depois de mulher. Ao se submeter ao casamento tradicional, mesmo com a rejeição da família do marido, se submetendo a silêncios, olhares, desprezos durante as relações diárias, como refeições e serviços domésticos. A entrada da cunhada, com pequenos afagos de carinhos, revela uma identificação entre as duas, que no final fica mais claro o motivo dentro da trama da história surreal de Junji Ito. E toda a história segue, com Riko tendo alguns sustos, quando vê outros parentes ancestrais nos cômodos da casa. Os pesadelos perduram, mesmo casada. O marido consola, mas a família ri da protagonista, quando sabe da história, o que intriga o leitor e isso instiga à leitura. A personagem conhece outro parente, ainda mais bizarro. As imagens desaparecidas dos antepassados, indicam fantasmas, sempre imóveis, na mesma posição. O marido explica para a mulher, que há muitos deles, que não são fantasmas, mas resíduos de imagens. Riko fica em choque... O marido segue explicando, morre seu avô, ela presencia uma cerimônia para invocar a imagem residual do avô falecido, e ora com eles, vendo a imagem se formar e se entusiasma em fazer o mesmo com seu pai. O marido explica que era uma prática familiar, mas que iria tentar com a família. Eles rejeitam, a Riko explode com todos. Chora. E descobre, ao ser consolada pela irmã do marido, que a cunhada também era uma imagem residual, que havia morrido muito nova.


Em uma das cenas, o autor mostra o drama da mãe do marido de Riko, com a filha ao colo, enquanto a imagem residual fazia planos para se casar num futuro que nunca chegaria. O mangá traz as imagens residuais dos antepassados se desafazendo aos poucos, com o passar do tempo. Usa túneis para revelar passagem de tempo. Oito anos se passam e o desprezo dos sogros por Riko seguia. De repente, depois desse tempo passado, a imagem bem traçada de Riko, fica mais clara no mangá. E ela vê o marido a traindo. Ao brigarem, ela descobre, que também é uma imagem residual... E o marido revela que ela havia morrido num acidente e ele tinha pedido para a família para invocar que eles criassem uma imagem residual dela, revelando todo seu amor. A surpresa é indescritível para o leitor. Também para a protagonista, mas depois fica leve pra ela e também para quem lê, pois provoca uma reflexão incrível. Ela sai da casa, despede da cunhada com reverência. O autor reflete como narrador, sobre o que o marido pensava ao ver a esposa sonhando e chorando com a morte do próprio pai? Ela sabe que tem mais dez anos antes de desaparecer, volta ao pai, e termina com ela dizendo... Estou de volta!


A história tem traços bem realistas, para os personagens e cenários, apesar da narrativa surrealista. Mantém as onomatopeias japonesas, vindo com traduções na versão nacional, o que é muito apreciado pelos apaixonados por mangá, pois fazem parte da obra artística do mangaká, já que elas ocupam um significado na arte final. Diante de outras obras que já li, Suave Adeus, de Junji Ito, me agradou muito, por ser mais curta e suscitar uma reflexão cultural diversa do ocidente sobre a morte/vida. Revela aspectos da cultura japonesa, ao mesmo tempo que instiga a refletir sobre os nossos medos, a insegurança feminina, e relação com o pai. Dentro do contexto de pandemia em que vivemos, apesar de ser um gênero de terror, traz uma reflexão sobre o luto muito rica, além de ser extremamente envolvente, por manter o suspense até o final, uma característica própria de Junji Ito, não à toa, mestre do terror. A obra marca um momento importante de maior acesso às obras de mangá no ocidente, o que possibilita leituras em português de uma nova fase do autor, que esperamos, perpetue por muito tempo ainda. Ele não inova em relação às outras obras, mantendo as calhas, a disposição dos quadros, as onomatopeias, as emoções momentâneas exageradas dos personagens, traços precisos, realistas, com revelação de alguns cenários em detalhes, mas com ênfase nos rostos, expressões dos rostos com suas percepções e sustos.


O acesso a essa obra é um estimulante a conhecer mais sobre o mangaká e permitiu desconstruir um certo preconceito em relação às temáticas de luta, erotismo, que não são agradáveis a todo tipo de leitor do ocidente, principalmente aos que buscam questões profundas e de sentido social relevante. Chama a atenção como a temática é universal e propõe uma reflexão sobre como encaramos a morte e também a vida antes e depois dela, tão imprescindível no mundo atual, corrido, onde se perde tanto tempo sem investir nas relações interpessoais. E onde o luto perde seu significado, em fugas diárias para um mundo cada vez mais corrido, ausente de rituais.Talvez por isso mesmo, a obra tenha encontrado tanta repercussão no Brasil. E é, como muitos comentaristas têm também dito, motivo de comemoração ver o autor sendo discutido e lembrado pelos fâs de HQs e também na universidade, em curso de Artes Plásticas. Portanto uma leitura agradável, que surpreende pela qualidade da narrativa, e imprescindível para os amantes de mangás e mangakás que queiram se aventurar nesse nicho de mercado no Brasil. E, pessoalmente, já vi que na Amazon, tem disponível em capa dura e mesma qualidade de “Fragmentos do Terror”, a versão de “Tomie”, em dois volumes, lançado este ano. Já está na lista para próxima aquisição, com certeza, para mais um mergulho no terror de Junji Ito. Terror assim, está bem melhor que o terror que o país tem vivido no contexto político atual. Bora aliviar! E aprender um bocado com esse fera oriental!


Referências Bibliográficas

ITO, Junji. Suave Adeus. In __________. Fragmentos do horror. São Pauo, Editora Dark Side.

Portal Listal. London, 2021. Disponível em: https://www.listal.com/junji-ito/. Acessado em 31/07/2021.

Portal Mob Ground. O paraíso dos insanos. Criado em 2012, estilo New Journalism, por colaboradores do Nerds Somos Nozes, Brasil. Disponível em: https://mobground.net/fragmentos-do-horror-uma-fracao-dos-pesadelos-de-junji-ito/. Acessado em 31/07/2021.

Portal Cultura Genial. Criado por 7Graus Ltda, Brasil. A cultura analisada, interpretada e explicada. Disponível em https://www.culturagenial.com/quadro-o-grito-de-edvard-munch/ Acessado em 31/07/2021.



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